Mangueira anuncia enredo para o carnaval 2020: A Verdade vos fará Livre
Campeã do carnaval carioca de 2019, a Estação Primeira de Mangueira anunciou que o enredo para 2020 é a biografia de Jesus Cristo. Com este enredo desenvolvido por Leandro Vieira, o carnavalesco retoma a questão da religiosidade apresentada em 2017, sob um novo ângulo. A Verde e Rosa pretende difundir as ideias pacifistas e igualitárias daquele cujo a história, de vida e de morte, tende a ser a mais popularmente divulgada no imaginário coletivo mundial.
"Sigo acreditando no desfile como um lugar de arte de alto nível. A vida de Cristo já foi material para o desenvolvimento estético de diferentes manifestações artísticas. Cristo já esteve nas salas de cinema, nos teatros e em exposições públicas realizadas em museus e galerias. É temática recorrente para pintores, escultores, músicos e mais recentemente, tema adaptado para a teledramaturgia brasileira. Como o desfile realizado na Sapucaí, aos meus olhos, é espaço para arte de alto nível e eu não corroboro com a visão preconceituosa de que os desfiles das escolas de samba seja "festa pra botar bunda de fora" e sim arte "maiúscula", debruçar-me sobre esse tema é pra mim seguir com uma das mais antigas tradições de temáticas artísticas da história das artes visuais", finalizou Leandro Vieira, campeão em 2016, ano de estreia na Mangueira, e em 2019.
Renan Oliveira e Débora Almeida, segundo casal de mestre-sala e
porta-bandeira da Estação Primeira de Mangueira
(Foto Leo Queiroz)
Eis a sinopse do enredo que busca o 21º título de campeã para a Estação Primeira de Mangueira
“Vou pedir que me levem lá pro céu
Que cada dia chega mais perto do morro
E onde já viram Deus compondo
Um samba para escola desfilar”
(SAMBA de Hermínio Bello de Carvalho e Maurício Tapajós)
A VERDADE VOS FARÁ LIVRE
Nasceu
pobre e sua pele nunca foi tão branca quanto sugere sua imagem mais
popular. Sem posses e mais retinto do que lhe foi apresentado, andou ao
lado daqueles que a sociedade virou as costas oferecendo-lhes sua face
mais amorosa e desprovida de intolerância. Sábio, separou o joio do
trigo, semeou terrenos férteis e jamais deixou uma ovelha sequer para
trás.
Exaltou
os humildes e condenou o acúmulo de riqueza. Insurgiu-se contra o
comércio da fé e desafiou a hipocrisia dos líderes religiosos de seu
tempo. Questionou o poder do Império Romano e condenou a opressão. Seu
comportamento pacifista e suas ideias revolucionárias inflamaram o
discurso dos algozes que passaram a excitar o estado a decretar sua
sentença. O fim todos sabemos: Foi torturado, padeceu e morreu.
Séculos
depois, sua trajetória ainda anda na boca dos homens e em seu nome,
para o mal dito “de bem” – e com rígido contorno de moralidade - muito
já foi realizado de forma estanque ao sentido mais completo do AMOR por
ele difundido. O amor incondicional, irrestrito e ágape.
Por
isso, quando preso à cruz, ele não pode ser apresentado como um. Ser
um, exclui os demais. Preso à cruz, ele é a extensão de tantos,
inclusive daqueles que a escolha pelo modelo “oficial” quis esconder.
Sendo assim, sua imagem humana não pode ser apenas branca e masculina.
Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que a
igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que
professa a fé apedrejada e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do
menor que você teme no momento em que ele lhe estende a mão nas
calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram
ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a
extensão de seu corpo.
Sem
anunciar o inferno, ele prometeu que voltaria. Acredito que, se ele
voltasse à terra por uma encosta que toca o céu - para nascer da mesma
forma: pobre e mais retinto, criado por pai e mãe humilde, para viver ao
lado dos oprimidos e dar-lhes acolhimento - ele desceria pela parte
mais íngreme de uma favela qualquer dessa cidade. Talvez na Vila
Miséria*, região mais alta e habitada do Morro de Mangueira. Ali, uma
estrela iluminaria a sala sem emboço onde ele nasceria menino outra vez.
Então, ele cresceria entre os becos da Travessa Saião Lobato*, correria
junto das crianças da Candelária*, espalharia suas palavras no Chalé* e
no "Pindura" Saia*. Impediria que atirassem pedras contra os que vivem
nas quebradas e nos becos do Buraco Quente*. Estaria do lado dos sem
eira e nem beira estranhando ver sua imagem erguida para a foto postal
tão distante, dando as costas para aqueles onde seu abraço é tão
necessário.
Se
sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em
comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. Teria a
morte incentivada pelas velhas ideias que ainda habitam os homens. O
amor irrestrito ainda assusta. A diferença jamais foi entendida.
Estender a mão ao oprimido ainda causa estranheza. Seria torturado com
base nas mesmas ideias.
Morto,
ressuscitaria mais uma vez e, por ter voltado em Mangueira, saudaríamos
a possibilidade de vermos seu sorriso amoroso novamente com o que aqui
fazemos de melhor. Louvaríamos sua presença afetuosa com samba e
batucada. Vestiríamos todos nossa roupa mais cara. Aquela de paetês e
purpurina. De cetim com joias falsas. Desfilaríamos diante dele e, em
seu louvor, instauraríamos a lei que rege nossos três dias de folia. Sem
pecado, irmanados e em pleno estado de graça.
Explicaríamos
nessa ocasião que a cruz pesada que carregamos como fardo ao longo do
ano nos é tirada das costas no carnaval. Por ter vencido a morte e sem
ter o peso de sua cruz nas costas, ele sorri para a baiana que desce
para se apresentar. Ele acena com a mão direita para a passista que
amarra a sandália, enquanto a mão esquerda dá a benção para o ritmista
que rompe o silencio com a levada de seu tamborim.
Fitando
o céu, ele parece ver algo ou alguém acima da linha do horizonte.
Sorri, como se pego em meio a brincadeira e se soubesse humano também.
Entendendo que ali ele é rebento e que todos, sem exceção, são seu
rebanho; ciente de que o pecado, por vezes, é invenção para garantir
medo e servidão, ele pede para que toda essa gente que brinca anuncie
enquanto canta sorrindo: A VERDADE VOS FARÁ LIVRE.
Vila
Miséria* Travessa Saião Lobato* Candelária* Chalé* Pindura Saia* Buraco
Quente* - Todos os nomes referem-se a localidades ocupadas pela
comunidade do Morro da Mangueira.
Rio de Janeiro, Julho de 2019.
PESQUISA, DESENVOLVIMENTO E TEXTO: LEANDRO VIEIRA
Casal de mestre-sala e porta-bandeira evolui no Palácio do Samba,
a quadra da Estação Primeira de Mangueira
(Foto Leo Queiroz)
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