Vieux Port
Cláudio Guimarães dos Santos faz a estreia mundial do poema Vieux Port aqui no Blog. Vivendo em Mont Royal, no Canadá, onde o diplomata de carreira serve na Missão Brasileira junto à Organização de Aviação Civil Internacional. O poema fala deste momento complexo que vivemos no mundo todo e será incluído na próxima coletânea do também escritor e médico.
As fotos que ilustram este post foram quase todas feitas no Vieux Port de Montreal. Pelo próprio diplomata, médico e poeta.
Vieux Port
Enfim, o cais.
Depois dos mares revoltos,
Das praias, vistas de longe,
Das dores, sempre tão perto,
Depois de tanta alegria,
Das noites embriagadas
Conversando com as estrelas,
Depois das tardes sagradas
De divina inconsequência,
Depois de cada poema,
De cada amor desfraldado,
Das sereias ondulantes,
Da surdez das tempestades,
Das alvoradas parindo,
Na salgada imensidão,
A lucidez das manhãs...
O cais, enfim,
O cais, por fim,
No fim,o cais,
Definitivamente.
Percorro ruas caladas,
Já que todos se foram
Numa fuga redentora,
Com medo, decerto, da peste,
Ou, quem sabe, uns dos outros
(Ou —suspeito —de si mesmos),
Deixando as lojas vazias,
Os escritórios desertos,
As vidas paradas no meio,
Os carros ligados sem dono
E os navios a balançar
Neste cais abandonado,
Onde a brisa sorri, só,
Onde o tempo congelou.
(E eram vidas vazias
Como sempre haviam sido,
Embora muitos fingissem
Que não era bem assim,
Mas de nada adiantava,
Porque tudo refletia
A inescapável solidão
De cada um,
Que brilha áspera,
Que não decepa,
Mas dilacera como a fé indignada
De acordar sem Deus,
Que se recusa a apostar no futuro,
Que não confia mais na virtude,
Que desistiu de educar a humanidade.)
Chego ao cais rico e pobre
Bem mais do que quando parti.
Não sei se sou o mesmo
Que, hoje, pisa nestas pedras
Tantos anos depois.
Trago, comigo, os vincos do futuro
Que festeja mas ranhuras do Destino
Pelas quais não rastejei,
Eu que sempre fui ruptura,
Radical curiosidade
Que se atiça com o aroma da mudança,
Rubro outono que jamais desbotará —
Como me disse a Musa —,
Caos perpétuo e organizado,
Inquietude multiplexa
De um espelho esfacelado
Que se cola, pedacinho a pedacinho,
Para,de novo, triunfante, esfacelar-se.
Ao cais aporto consciente de que é tarde,
De que a História não respeita simetrias,
De que o sono já me fecha os olhos,
De que a idade dissecou meu corpo
E aguçou minh’alma,
De que anseio mergulhar no abraço
De um leito carinhoso,
Onde eu sonhe um sonho indiferente,
Sem presságios nem remorsos,
Um sonho de porto final,
De farol solitário
Plantado em áspero arrecife
Batido pelas ondas,
Muito longe, mar adentro,
Onde o vento zune, rouco,
Onde o frio corrói a mentira
E toda palavra supérflua.
Dessa rocha, seguirei iluminando,
Com a luz que me é própria —
Mas que não vem de mim —,
O mundo como eu mesmo o represento,
Cumprindo a missão justa dos poetas:
A de narrar retornos,
A de cantar saudades,
A de intuir naufrágios.
E, a cada ocaso, serei claro,
Emulando, obediente,
As travessuras da Graça,
Como um cego dançando sob o sol,
Até que, um dia, novamente,
Sem temores sobre as águas andarei.
Cláudio Guimarães dos Santos
Leia também:
https://tarsomarketing.blogspot.com/2019/03/um-colecionador-de-epifanias.html
https://tarsomarketing.blogspot.com/2020/10/formatura-no-itamaraty.html
Comentários
Postar um comentário