A Casa da Ópera de Ouro Preto


O pomposo nome Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto revela o apogeu da civilização criada na região das Minas Gerais e que há 40 anos mereceu da UNESCO o título de Patrimônio Mundial da Humanidade. Foi lá que entre sonhos e quimeras de raríssimo esplendor viveu a Cinderela, a Sinhá Olimpia dos versos de Hélio Rodrigues Neves (Hélio Turco), Jurandir Pereira e Álvaro Luiz Caetano (Alvinho) do antológico samba da Estação Primeira de Mangueira. Para registrar uma outra data, os 250 anos do teatro mais antigo do Brasil, da América Latina e de um dos mais antigos em funcionamento do mundo foi lançado o livro Casa da Ópera de Vila Rica - Ouro Preto: 1770-2020, obra ilustrada pelas fotografias de Lucas Godoy e com prefácio de Zaqueu Astoni, ex-secretário de Cultura e Patrimônio de Ouro Preto. Organizado por Rosana Moraes Marreco Orsini Brescia, uma capixaba de Vitória, mineira e mangueirense de coração, musicóloga, cantora lírica, soprano e professora da Universidade Nova de Lisboa. E autora do livro “É lá que se representa a comédia: a Casa da Ópera de Vila Rica 1770-1822”, lançado em 2012.

Nossa convidada, revela como a ideia sugiu e como a pesquisa desenvolveu-se.

Com a palavra, Rosana Orsini:

Foi no mês de julho de 2001. A minha então professora de canto, Elenis Guimarães, uma talentosa soprano ouro-pretana que vivia em São Paulo, voltou a sua cidade natal para oferecer um recital. Como eu morava em Belo Horizonte, não podia perder a oportunidade de ouvir uma cantora que eu muito admirava e fui para Ouro Preto com um amigo Valdir Claudino, também músico. Chegando à cidade ele me perguntou onde seria o concerto e eu respondi que seria no Teatro Municipal (que não tinha ideia de onde ficava). Ele disse que sabia e fomos diretamente para lá. Quando entrei no teatro pela primeira vez fiquei maravilhada. Meu amigo tinha o programa do concerto nas mãos onde estava escrito “Casa da Ópera de Ouro Preto”. Eu pensei: casa da ÓPERA? Mas quando foi construído esse teatro? Meu amigo respondeu que não sabia, mas que achava que era do século XVIII. E eu ainda mais maravilhada disse: e tinha ópera em Ouro Preto no século XVIII? Que óperas eram representadas aqui? Quem eram os artistas? Quem financiava o teatro? Quem o frequentava? E o edifício, quem construiu? Curioso pensar que, anos mais tarde, essas perguntas estruturariam a minha tese de doutorado na Universidade Sorbonne – Paris IV sobre as Casas da Ópera da América Portuguesa no século XVIII.

Voltando àquela noite de inverno, assim que acabou o concerto fui à portaria do teatro perguntar se havia alguma publicação que contasse a história da Casa da Ópera. Um senhor muito simpático (que mais tarde se tornaria um grande amigo e um dos maiores incentivadores da minha pesquisa) disse que infelizmente não havia, mas me deu um folheto da Prefeitura Municipal que dizia que a Casa da Ópera tinha sido construída por João de Sousa Lisboa em 1770. Voltei para Belo Horizonte e fui direto para a internet procurar mais informações sobre o teatro… encontrei pouca coisa para além dos dados do folheto da prefeitura, mas não importava. Existe sim amor à primeira vista e naquela noite tinha encontrado um dos grandes amores da minha vida, a “minha” Casa da Ópera.


Um ano mais tarde me formei em canto pela Universidade Federal de Minas Gerais, fiz um mestrado também em canto na Manhattan School of Music de Nova York e uma pós- graduação na Royal Academy of Music de Londres. Foi em Londres que uma vizinha da residência universitária onde eu morava me deu grande presente. Ela, Lucy Jessop, era professora de história da arquitetura inglesa e me convidou para assistir suas aulas como ouvinte. De repente, todo o mundo tinha ficado mais interessante. As ruas, as casas, os palácios… tudo tinha outro interesse porque agora eu sabia (ainda que muito superficialmente) interpretá-los. A cada aula eu pensava no “meu” teatro e em como aplicar aquele conhecimento novo (e adquirir outros tantos) para compreender melhor a arquitetura da Casa da Ópera. Comecei a ler tudo o que encontrava sobre teatros do século XVIII, sobre a música na América Portuguesa, sobre a história de Minas… e decidi me inscrever no mestrado em História Moderna e Contemporânea da Universidade Sorbonne, em Paris. Tive o privilégio de ser orientada por um dos mais brilhantes historiadores brasileiros da atualidade, e, como o conhecimento é das coisas que mais viciam o ser humano, segui para o doutorado. Apesar de viver na Europa há alguns anos eu não conhecia Portugal, e quanto mais eu lia sobre a história do Brasil e as relações culturais entre a metrópole e a então colônia, mais necessidade eu tinha de conhecer Lisboa. Enfim, como se diz por aqui: quem não viu Lisboa não viu coisa boa… 

Em uma semana de férias entre Lisboa e Porto eu e o meu parceiro Marco Brescia (porque a palavra marido é redutora para descrever a pessoa – músico do mais alto nível, historiador da arte e arquiteto – que esteve do meu lado todos esses anos) decidimos nos mudar para Portugal. Eu ganhei uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e consegui fazer com que o meu doutorado fosse realizado em cotutela entre a Universidade francesa e a Universidade Nova de Lisboa, entre a história e as ciências musicais. Em Portugal todo um horizonte foi aberto no que diz respeito a pesquisa. Me lembro da alegria que foi ir ao Arquivo Histórico Ultramarino em Belém e digitar o nome do tal João de Sousa Lisboa na base de dados, encontrando cerca de 34 documentos que descreviam sua atividade profissional, seus imbróglios com o fisco, sua prisão, seu teatro… enfim, o tal João passou a ser uma figura íntima.  













Em Lisboa conheci outros pesquisadores que me ajudaram a completar o quebra-cabeças. Finalmente a história da Casa da Ópera passava a fazer sentido, não como um elemento isolado, mas dentro do contexto de quase duas dezenas de teatros que funcionaram no Brasil setecentista, representando traduções de grandes poetas europeus e obras “ao gosto português” com atores e atrizes (sim, mulheres… as mesmas que em Lisboa estavam proibidas de subir nos palcos) pardas e pretas (aplaudidas por brancos apesar do terrível sistema opressor da escravidão), em um teatro construído segundo os preceitos dos teatros-corredor de Portugal, financiado pelos membros da elite de Minas Gerais que alugavam seus camarotes e pelos desqualificados que compravam os bilhetes dos bancos da plateia. E lá estava o nosso João (de Sousa Lisboa), sentado no camarote de número 14, no primeiro piso, o último ao lado direito de quem está no palco, a ver os seus atores e atrizes cantando obras de grandes mestres italianos sobre textos de Metastasio, recebendo em “sua” casa as mais importantes figuras de seu tempo… 

Enfim, essa é a primeira fase da história do teatro. Defendida a tese com o conceito máximo, fiz questão de que a parte ouro-pretana fosse editada em livro e disponibilizada na Casa da Ópera para que os próximos curiosos que se apaixonassem pelo teatro tivessem o caminho encurtado para conhecer a sua história.







Mas já se vão 10 anos da defesa do doutorado, 8 da publicação do primeiro livro, e nessa última década eu conheci uma outra parte da história do teatro. Descobri que ele não era “meu” mas sim “nosso”, e essa descoberta foi das melhores que tive. Conheci outros músicos (eruditos e populares), atores, historiadores, homens da política, musicólogos, historiadores da literatura e da arquitetura… ouro-pretanos, mineiros e não só… descobri que muita gente amava a Casa da Ópera com a mesma intensidade, e que cuidava dela com um carinho indescritível. E descobri que foi por isso que ela segue lá, linda e viva, enquanto a grande maioria dos teatros setecentistas brasileiros foram sendo extintos… por incêndios, por descuido, pela ignorância que leva o homem a substituir o antigo e o histórico pelo moderno, pela estupidez de engenheiros que destroem um teatro histórico para passar a linha do bonde (como se o dito não fizesse curvas)… A Casa da Ópera de Vila Rica e de Ouro Preto, de João de Sousa Lisboa, da Coroa Portuguesa, do Império Brasileiro, do Estado de Minas Gerais e da Prefeitura de Ouro Preto, é a casa da ópera dos artistas de Ouro Preto (e de muitos de nós, ouro-pretanos de coração), que, cada um da sua maneira, mantêm viva a sua história e a sua vocação.   

Esse ano a “nossa” Casa da Ópera completou 250 anos. Foi no dia 6 de junho, dia em que João de Sousa Lisboa decidiu, há dois séculos e meio, inaugurar o teatro homenageando o monarca português D. José I que nasceu no mesmo dia em 1714. Já no ano passado, com medo do  estado em que a cultura e as artes no Brasil pudessem estar com a atual política cultural federal e estadual, tomei a iniciativa de organizar um livro sobre o teatro. Mas como agora sei que ele é “nosso” (e não “meu), convidei outros amantes da Casa da Ópera para escrever sobre ele, sobre as artes em Vila Rica e em Portugal na altura da sua construção. Para que o leitor desse texto tenha ideia da força dessa Casa. O aniversário do teatro estaria evidentemente suspenso por causa da pandemia do Covid-19, mas os artistas da Casa da Ópera, que por 250 anos souberam superar todas as adversidades, deram a volta e organizaram uma “live” para que a data não passasse em branco. No sagrado palco da Casa da Ópera estavam Marcelino Xibil (grande ator e contador de causos) e o lendário Vicente Gomes (lembram do senhor simpático que me recebeu na minha primeira visita? Pois é, para além de patrimônio vivo do teatro ele é um talentosíssimo cantor e compositor). E virtualmente estávamos nós: acadêmicos, artistas, homens da política, público, amantes das artes… com a responsabilidade de transmitir esse amor que temos pela “nossa” Casa da Ópera para as gerações futuras, como exemplo máximo de que a arte muda o mundo!

 

Rua Brigadeiro Musqueira, número 68

 



Fotos Lucas Godoy

 

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